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sábado, 24 de abril de 2010

Um tempo de palavra (filosofia)

Eu tenho uma incrível dificuldade em fazer uma prova diretamente de caneta. Imagino que outros leitores devem compartilhar esse tipo de problema comigo. Simplesmente porque não sou suficientemente capaz de resumir toda uma resposta de forma objetiva e satisfatória, ao menos não na primeira tentativa. Eis que isso me leva a entregar a maioria das minhas provas a lápis, tanto pelo pouco tempo que sobra para passá-las a limpo como o incoveniente que é fazê-lo. Consequentemente, sou obrigado a ouvir a recorrente observação dos corretores da prova: "tudo bem, mas não poderá exigir recorreção", e eu simplesmente assinto com a cabeça diante daquela colocação indiscutível. Mas até que ponto indiscutível?

O argumento mais usado para impedir qualquer recorreção é o que diz que a prova é um documento e, como tal, deve ser preenchido de caneta, o que evitaria possíveis "alterações", se é que me entendem. Bem, eu lhes digo, minha palavra não vale mais nada? A palavra de ninguém não tem mais valor? Onde estão os tempos de honra? Se eu recebesse minha prova e visse um erro na correção, teria que me manter calado. Simplesmente porque, ao levá-la para ser examinada minha credibilidade seria contestada por ter feito a prova a lápis. Realmente o mundo mudou.

Apesar de termos feitos avanços fantásticos nos campos da ciência, da filosofia, e até onde podemos imaginar, nas leis e códigos éticos que integram nossa sociedade, de forma que ela se aproxime o melhor possível do que chamamos de "justa", o mundo se tornou mais hipócrita. Poderíamos sugerir culpados: a competição gerada e estimulada pelo nosso próprio sistema de governo, a superpopulação que levou a interação humana a níveis nunca antes vistos, a crises existenciais geradas pela contestação de nossas crenças sobrenaturais, a própria revelação da real natureza humana oriunda da nova sociedade, enfim... Fácil apontar culpados, difícil dizer quem tem a razão. Prefiro não me ater a isso. Prefiro focar-me na principal consequência causada por esse mundo hipócrita: a falta de confiança.

Não se pode dormir de portas abertas, evita-se cruzar com estranhos quando se está solitário em um rua escura, evita-se beber em um mesmo copo duas vezes em uma festa, principalmente se o tivermos perdido de vista, não se confia mais na própria polícia, que pode estar corrompida. E isso se estende até aspectos da vida que consideramos seguros, como evitar abrir um e-mail que possa conter um vírus, não confiar em uma babá para cuidar de seus filhos pequenos, lavar as leguminosas do mercado que podem conter agrotóxicos, e ainda se estende a grandes aspectos institucionais, como antes de fazer um seguro de vida é preciso saber sua condição sócio-econômica, seu estado de saúde, sua idade. Só recebe financiamentos altos quem comprova ter uma renda muito acima daquele valor das parcelas, para evitar os calotes, etc. Não negarei que é necessário, mas direi que não deveria ser.

Foi-se os tempos em que a palavra de um homem era todo o valor que atribuíam a ele. Foi-se os tempos em que contratos comerciais podiam ser selados com um aperto de mãos e a promessa de cumprimento do acordo de ambas as partes. Foi-se os tempos em que samurais que, após falhar para com seu imperador, suicidavam-se em nome de sua honra. Foi-se os tempos em que a única relação entre suserano e vassalo era a de fidelidade, ajudando-se mutuamente tanto em questões cotidianas e triviais, até o momento da deflagração de uma guerra.

Tristes esses tempos que aqui estão e que ainda estarão, em que a palavra de um homem vale menos que a tinta de uma caneta.

Um comentário:

  1. É Rick, nós vivemos num mundo de bosta, hipocrita, egoista e mentiroso... e quem for bom, só vai se fuder na mão dos outros....... acostume-se.

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